EX NUNC, um romancete - 1ª Sessão
- Algum Lucas
- 10 de fev. de 2020
- 8 min de leitura
Atualizado: 21 de abr. de 2020
EX NUNC
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Este livro pertence ao gênero literário Romancete
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PERFAÇO
Eu tenho o hábito enfadonho de fabricar realidades por meio da repetição, em tons convictos, de qualquer que seja a bola da vez. Tentei sujar o mundo com o simulacro dos meus medos para não ter que lidar com eles em mim. Travesti os sonhos dos outros como meus para que não vivesse o risco do fracasso. Enfeitei meus fracassos internos como fossem meros périplos circunstanciais. Tentei me convencer de que era doente para não ter de aceitar que estava errado.
E por que tenho, às vezes (quase sempre), tanto medo de que estejam reparando em mim? Que reparem. Não tenho nada que valha a pena esconder. E que repare esse desgraçado, corrupto e vaidoso, criatura mesquinha que se alimenta do impor-se sobre os que estão abaixo na escala hierárquica. Quando o vejo, tudo o que consigo pensar gira em torno da sua ontologia, a qual se poderia muito bem chamar ontologia da vaidade. É possível que alguém passe pela vida assim, tão indiscriminada e impassivelmente, que não chegue a se influenciar nem mesmo pela passagem do tempo? Nessa figura amesquinhada — para mim — pelo conjunto de todos os vícios e mediocridades concebíveis — para mim —, há ainda quem encontre virtudes e — pasmo — glória, status.
E, no fim, aquele que julga sou eu. Nessas horas, sinto-me uma de minhas primeiras personagens, Nero — talvez nunca tenha me conhecido tão bem quanto naqueles tempos —, e talvez seja justamente por isso que fiz tantos esforços para fugir de mim e encontrar-me noutra pessoa. Mas tudo isso passou. O presente é passado agora, na simultaneidade de uma ambiguidade estrutural. Sei quem sou, outra vez, e às vezes me percebo com medo de que me percebam. E, por mais que o tempo passe, e a vida seja sempre inquestionavelmente outra, penso e penso e repenso e chego sempre à mesma questão: será que realmente mudei?
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As transcrições das sessões subsequentes são fac-similares e têm por força motriz o esclarecimento da situação psicológica de uma personagem de que, infelizmente, sabe-se o triste fim.
1ª Sessão
Então... posso começar? Só ir falando mesmo? Ok. Bom... eu vim acho que principalmente pra parar de fumar. Eu tentei e tentei, mas não dá, sozinho é muito difícil. Não sozinho, sozinho — minha namorada parou, ela me ajuda, só que ainda assim é complicado. Com o cheiro de cigarro que fica em mim, não sei como ela consegue. E tem aquela história de que todo mundo precisa cuidar da mente igual cuida do corpo e tudo o mais, mas percebe-se que, no meu caso arredondado, comecei pela mente. Cruzes, você é difícil mesmo. A piada foi boa, mas esse silêncio... Bom... ah! tem isso também, eu me formei em direito e tudo o mais agora recentemente. Me pegaram naquela história de "olha, filho, o Direito te abre um leque de opções", aí fazem o gesto com as mãozinhas, de um lequezinho abrindo, sabe? Hoje eu rio, mas isso me enfurecia, toda vez. Mas então: me formei, blá blá blá e tudo o mais, só que o que eu queria mesmo era ser comediante. Fui fazendo a faculdade porque era melhor que ter que me sustentar. Pensei: "bom, ao menos aprender a falar em público eu aprendo." Acho que não aprendi muito bem, não. Sou praticamente motoboy: é "Zé, leva isso pra lá, leva isso pra cá; preciso da assinatura de fulano pra ontem" e por aí vai. Deixa eu ver... acho que é isso — primeiro de tudo é isso.
Por quê Zé? Ah! Essa história é engraçada. Tava tentando transformar num bit bom, sabe? Bit? É tipo a piada do stand-up, só que a historinha toda, daí. Então, tinha esse colega, na escola. A gente devia ter o que? Onze anos?... — Olha, tem isso, não sei porque eu finjo que não me lembro. Faço muito esse joguinho. Eu sei que era quando eu tinha onze anos, mas na hora me dá vergonha de falar. Bom poder falar isso aqui, porque acontece sempre... Mas enfim, onze anos, escola nova, blá blá blá; tinha aquele colega mais popularzinho que esquecia ou fingia que esquecia os nomes dos outros e tal (Pedro, o nome dele; Pedro Couto, virou professor, eu acho), mas o negócio é que aí era Fulano pra um, Polaco pra outro e o desgraçado encasquetou de me chamar de Zé. O duro é que pegou. Esse é o tanto que meu nome significava pra eles (o tanto que eu devia significar, né...). Aí pegou. Primeira vez que meus amigos foram em casa, já passaram também meus irmãos e o Pai a me chamar de Zé e aí nunca mais. Não é que eu não goste, mas, poxa, você chega numa escola nova, vai fazer amizades e, de repente, só te chamam de Zé, Zezinho etc. Pra vida toda agora é Zé. A namorada ainda chama de "amor", mas a Júlia não conta. Esses dias até minha mãe (coitada) chamou, depois de anos e anos resistindo.
Que mais? Bom, o cigarro, né? A adolescência foi sossegada, na verdade. Eu comecei a fumar tem o quê? Cruzes... sério, me desculpa, mal começamos e é a segunda vez que faço isso. É um instinto de tentar fingir que não ensaiei tudo o que diria aqui hoje, sabe? Como se você já não soubesse que todo mundo se prepara (ainda mais gente ansiosa tipo eu). Não pode fumar aqui dentro, né? Não, não, errado sou eu, que fumo. Desculpa. Onde a gente tava mesmo? Ah! isso.
A adolescência: nada de muito grave. Eu era até que bem quisto na escola; não tinha problemas em casa e tal (aquele negócio de filho do meio e tudo o mais); meus irmãos e eu nem brigávamos muito, pra falar a verdade; a mãe e o Pai tavam bem... Só desandou um pouco mesmo quando o Pedro morreu. Não, não (me desculpa), o Pedro meu irmão, não o Pedro Couto. Quem me dera tivesse morrido esse daí. Eu detestava esse maldito desse Pedro Couto. "A menina que eu gostava", que por acaso era a menina mais genericamente bonita da sala (Ana Maria Paixão!), morria de amores pelo idiota e ele cagava pra ela. Que história ridícula, a minha, cruzes... Mas tudo bem, vou contar: acontece que o infeliz do Pedro Couto era crente. Pois é. Crente em nome de Jesus, amém. Meu bully era um crente que escolheu esperar. E o desgraçado ainda me era voluntário em lar de velhinhos e tudo o mais.
Acabei namorando a amiga da Paixão (que não era má, nem nada, eu é que fazia pouco caso) por uns dois meses, mas ela eventualmente largou mão de ser idiota e me deu um pé na bunda. E aí eu fiquei à deriva, igual um bobão (adolescente comum mesmo), de festa em festa tentando um beijinho aqui, um algoamais ali... Os conselhos dos meus irmãos nunca levavam a nada, e assim eu fui até a escola acabar. Assim, não é que não levavam a nada também. Os do Juninho eu não tinha como seguir mesmo, porque pareciam os do Pai saindo da boca de um pirralho comedor de catota; os do Pedro eu até tentava, mas sempre me faltou a sensibilidade, sabe? O tato. Acho que sempre fui meio inadequado (socialmente falando), por ter sido muito mimado em casa. A minha mãe (tadinha...), depois que o Pedro morreu, piorou... Só não ia me limpar no banheiro porque eu não chamava.
Posso falar a verdade? Tinha me organizado todo pra não falar disso hoje (afinal, é duro confiar em alguém logo de cara assim), mas você é profissional, e isso de qualquer jeito não é nenhum super segredo — antes fosse. Eu como cocô. Sacanagem. Desculpa mesmo, tem horas que é difícil evitar. É meu mecanismo de defesa, sabe? Não, eu não como cocô, e, sim, meu irmão mais velho, três anos a mais que eu, o Pedro, morreu. Inspira, expira... Não, ele não morreu, morreu. Ele se suicidou, na verdade. Um segundo.
Perdão. É que falar disso assim, sério, e com um tempo só pra mim... Enfim: o Pedro se matou e eis o detalhe: com dois tiros. Primeiro, ele mutilou seu muchacho, seu próprio terceiro membro, seu amiguinho (como preferir); e, logo em seguida, pôs o revólver na têmpora direita e — pum! Foi-se embora. Como eu sei que logo em seguida? Eis o charme — o tempero — da minha tragédia: acordei com o Pedro me abraçando e dizendo que me amava, devia ser coisa de duas ou três da manhã; o Pai e ele tinham tido uma briga extracurricular naquele dia (extracurricular porque no currículo já vinha incluso "não quero fazer Direito I", "introdução à paixão por futebol" e "fundamentos da satisfação das novinha"); sei que no dia eu achei que passava e tudo o mais (apesar de ter saído murro, até), e fiquei no meu canto. Minha preocupação, na verdade, quando ele me acordou, era olhar se não tinha nada desenhado no meu rosto ou coisa assim. Voltei a dormir e só acordei no primeiro tiro. Cheguei ao banheiro logo depois do segundo e tive tempo de ver o Pai arrombar a porta à base do chute. Uma anedota disso é que na hora me deu vontade de rir do velho chutando a porta até ela abrir, porque se você soubesse quantas histórias de "com um chute só, nos tempos de soldado!" eu já não ouvi nessa vida...
E foi isso aí, a adolescência. O quê? Mais o quê? Ah, daí a gente (vulgo moá) descobriu que o Pedro era gay e o "tratavam", desde criança; e nesse dia ele só foi lá e se matou. Tinha dezessete anos e eu quatorze. O mais difícil pra mim é pensar — não, pensar não: ter a certeza de que, se ele tivesse tentado falar comigo, eu faria alguma piada ou só teria nojo, mesmo. Era essa a nossa educação lá em casa. Meu irmão morreu santo, porém. E virgem, até onde eu sei. Deve estar lá pelo céu a essas horas. Era um pentelho desgraçado, comigo, apesar de muito bom conselheiro, mas no velório... Cada barbaridade que ouvi. "Seria um grande jurista"; "o mais carinhoso de todos"; "o mais sábio quando o assunto era enganar o Pai"... (esse último fui eu que falei, achando que ia ser engraçado. Não foi).
"Minha narrativa". Acho engraçado. O termo, em si, mesmo. "Minha narrativa faz parecer que..." Eu realmente acho que isso não foi grande coisa mesmo. Assim, é claro que perder o irmão não é qualquer coisa, mas eu era novo e tinha problemas mais iminentes como gostar da Ana Maria Paixão, odiar o Pedro Couto e tentar perder a virgindade com a Vitória. A morte do Pedro veio doer uns anos mais pra frente, quando comecei a achar que eu mesmo era gay porque não queria jogar bola, nem fazer Direito e entrar pro tiro de guerra. "É o que faz o Homem." Pois que fosse à merda o Homem. Eu queria era ficar tranquilo em casa, vendo TV, comendo pipoca. Como, no fim das contas, o Coronel quer, o Coronel tem, não teve jeito e acabou que tive de ir fazer Direito. Mas do tiro de guerra fugi, ô se fugi. Caprichei nos óculos, fiz voz afeminada, respirei igual a asmático. Militar é brabo, mas é previsível. O que é irônico, porque, se for pensar, pra ganhar a guerra tem que ser mais esperto. De todo modo, quem foi milico nessa fui eu, né? O Pai? Ah, piar ele piou, mas também essa ideia de que favorzinho resolve tudo é coisa de filme. Não entrei, não entrei e ponto final. Aleluia!
Ah! Eu falei do Otávio já? Otávio é meu melhor amigo. Foi amigo de colégio e entrou na faculdade comigo. Ele teve que fazer tirão, por isso que o sr. Coronel o idolatra. "Otávio é um exemplo, filho; grande Homem, grande amigo." "Grande Homem" pra um pivete de vinte e poucos como eu, que mal tem a dignidade de sair da casa dos pais... Eu? Que nada, moro com eles ainda também — mas nunca disse que não era pivete! Cada vez menos tempo pra chegar nos trinta e eu ainda na caminha de solteiro. A essa altura meu objetivo é não ser um daqueles. Um dos "trintaanosemoracomospais?!" Ô raiva que me dá esse povo...
O quê? Já acabou? Cruzes, mas eu mal falei do... Tudo bem, deve ser culpa minha mesmo, falo demais, acabo me empolgando. Pra quê que fui falar do Pedro Couto? O que foi o Pedro Couto pra minha vida? Devia mesmo é ter falado da Vitória, coitada. Até da Paixão... Ok. Semana que vem, o mesmo horário, né? Combinados, então. Boa tarde. Tchau! Próxima sessão
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