EX NUNC, um romancete - 2ª Sessão
- Algum Lucas
- 10 de fev. de 2020
- 7 min de leitura
Atualizado: 21 de abr. de 2020
2ª Sessão
Olá. Opa, posso entrar, então? Ok, beleza, obrigado.
É... bom... é igual à última vez, né? Só sair falando e tudo o mais... Tudo bem, tudo bem, vamos lá. Bom... começamos então com o cigarro que é o motivo mesmo de eu ter vindo; semana passada acabei despirocando a falar do Pedro Couto e não falei daquilo que importa. Eu não consegui parar ainda, mas já reduzi a quantidade. Desde que vim semana passada, tô fumando só um maço por dia, mas volta e meia ainda tenho que sair escondido pra fumar... Não tinha dito isso, né? Então, é que às vezes acabo me deixando levar pelo stress e saio "pro banheiro". Uso o banheiro da Jandira, porque ela fuma também, então ficamos nessa. Vez e outra dou um cigarrinho meu pra ela e fica tudo bem. Gente miserável costuma se entender. Filho dela tá com leucemia, descobriu esses tempos. A Jandira? Ah, não sei; pra mais de setenta, com certeza absoluta. Mas é bem "sabida", ela; não é velhinha tonta, não. O doutor Luiz é todo "data venia" pra cá, "por obséquio" pra lá e a Jandira pega tudo, deve saber mais jargão latino do que eu.
Eu? Ah, não sei, a Jandira me ajuda a espairecer no trabalho, porque a verdade é que é bom sentir que tenho alguém com quem falar, lá, sabe? O doutor Luiz me trata igual pivete, e, como sou praticamente um contínuo, o resto do pessoal lá também. Até o menino novo que entrou agora, que é mais novo que eu, inclusive — até ele me trata como menor, já tá todo enturmado com o pessoal. É todo diversificado, com tatuagem tribal e tudo o mais. Fez intercâmbio na gringa e tal... Eu até podia ter feito também, mas acabou que me dei mal no colégio e o Pai encerrou com a possibilidade. E também que isso foi logo depois da coisa toda do Pedro e "é preciso estar com a família" e tudo o mais e blá blá blá.
Acho que não... Não me sinto inferior... Assim, depende: às vezes penso que podia ter me dedicado mais e tal, mas meu sonho mesmo é a comédia, entende? Não quero agora correr atrás de corrigir meus erros do passado e perder o tempo que tenho de realmente seguir meu sonho e praticar aquilo que quero fazer pro resto da vida, sabe? Ah, não muito... tenho escrito menos, agora, com a questão do cigarro e tudo o mais. Só que, assim, acho que é muito mais um trabalho de pensar e perceber o mundo, sabe? Acho que quem escreve demais também acaba por parar de pensar e tal... Mas eu sei, eu sei que parece desculpa pra não escrever as piadas; eu devia pelo menos começar a anotar com mais frequência, né? Vou fazer assim: prometo que saindo daqui passo na papelaria e compro um daqueles caderninhos profissionais e uma canetinha e já começo a anotar tudo. Pra mim? Tudo bem, então: eu ME prometo que vou começar a anotar e que vou comprar um caderninho... Ê, caramba, não nessa ordem, obviamente.
Que mais? Ah! Então, acho que tô meio pra baixo esses dias por causa do Juninho, meu irmão mais novo. Tadinho, não bastasse ter nascido com o mesmo nome do Pai, porque a criatividade acabou no segundo filho, o menino ainda tem que aturar sozinho a carência da mãe (coitada...). Se eu não tivesse feito Direito, tava arruinada a vida dele; seria outro irmão na vala... Cruzes, não foi assim que eu quis dizer... Não, na verdade, não. Eu acho que, assim, sou o único bem-humorado em casa, sabe? Aí acaba que a comédia funciona de mecanismo de defesa. Claro que eu não falo disso em casa — já me basta ouvir por não querer ser promotor. Mas acontece que o Juninho já vai fazer vestibular esse ano, e aí fica aquele negócio: "pode fazer o que você quiser, em, filhô, desde que faça bem feito. Que acha que o Pedro faria, em? O Pai sempre quis um filho médico, engenheiro, adêvogado..." A sutileza ele nem precisou ir à guerra pra aprender...
Bom... dentre as duas opções, prefiro falar do Juninho antes, porque tô cansado hoje pra ter que falar do Pai. Tá bom, vamos lá: o Juninho deve ter o quê? Cinco an— olha aí, mais uma vez eu dando uma de João sem braço... é óbvio que eu sei quantos anos o Juninho tem, até quem não soubesse a idade exata chutaria certo, se já falei que o menino vai fazer vestibular... Enfim, tá indo pros dezoito, ou como o Pai diria: "já tá na hora de virá Home, em?"
O Juninho, ele é... não sei, ele é esquisito. Ah... esquisito, porque não teve problema no colégio, não era o mais popular, nem o menos, nunca brigou, namorou uma menina novinha... aí ficou solteiro... aí resolveu estudar... Eu sei lá como é que funciona a cabeça do menino, só sei que não me pede conselho, não precisa de ninguém, sabe? Esses dias tava olhando anúncio de vaga pra professor particular de espanhol... e eu nem sabia que ele hablava... Acho que, no fim, ele sempre foi mais da minha mãe (pobrezinha). Porque o Pedro mesmo e eu, a gente não dava muita bola pro Juninho. Criança mais nova, sabe como é, fica pentelhando até quando quer agradar. E ele era muito chegado no Pai, também... acredita que eu acho que nunca vi o diabo apanhar? E olha que o Pedro e eu já apanhamos em praça de alimentação por querer trocar a surpresinha do lanche... Acho que o pai ficou mole, não sei...
Não, não, de maneira alguma. Se fosse pra ter ressentimento de alguém eu tinha da mãe (coitada), que deixou o Pai fazer aquilo com a gente, pô. Fazendo a cega. Agora, quando o Juninho nasceu, eles já tavam calejados, e quando o Pedro era adolescente o Pai já me batia menos, aí acho que, quando o Juninho cresceu, o Pai já sabia ter dó.
A coisa toda, se bobear, foi sempre mais fácil pra mim, por um lado. Isso porque não puderam se recuperar a tempo de exigir de mim as coisas, o Pai e a mãe (coitada). Mas o lado ruim é que fiquei meio à revelia, sabe? Sempre me senti meio sozinho em casa, deslocado. E não também que o Pedro vivo fosse mudar isso, o que tínhamos em comum era o inimigo... Ah, sei lá... Acho que sim, dá pra dizer que essa ideia de família nunca funcionou assim pra mim. Olha a Júlia, por exemplo: quer família mais ferrada que a dela? Eles têm grana? À beça! Têm status? Ô! Agora, me pergunta se eles têm noção do que ela faz ou de qual é o dia da semana — nem precisa, vou responder: não têm. Fisioterapia é carreira também, pô, nem tudo se resume à medicina. Eles? Ah, são alcoólatras e médicos, mas a medicina eles praticam menos vezes por semana. Você tem noção de quanto ganha um anestesista? É um absurdo, pura e simplesmente. A Júlia estuda e ajuda muito mais que os pais e eles não respeitam, não adianta. Ao menos ela é ligada nessa de saúde. Começou a fumar só pra chamar a atenção, mesmo. Resultado: os pais pararam de fumar escondido. Minha sogra eu acho que nunca vi sóbria. É remedinho pra cá, golezinho pra lá... Meu cunhado então, é um merdeiro sem tamanho. Mais playboy não há. Esse sim é o orgulho da família. Entrou numa particular de medicina aí e, pelo ritmo da coisa, a expectativa de se formar é pra antes dos quarenta.
Não sei se eu devia falar disso aqui, parece que fico só destilando veneno, mas à merda — acho importante: esse meu querido familiar-adjunto, recentemente, numa dessas festas de calourada de medicina e tal (que deve ser um momento de catarse sem igual na vida da maioria dessa molecada), deve ter feito alguma merda muito grande. Mas, assim: MUITO GRANDE. A Júlia não quer nem me contar. Papai e mamãe já chamaram o advogado e compraram remedinhos. A minha hipótese é que ele drogou uma menina e fez alguma merda. Esse é um dos casos em que eu gostaria de estar fingindo que não sei e tudo o mais, mas que a coisa tá estranha, ela tá. A namoradinha pop dele sumiu da fita depois dessa história aí e tirou do ar as fotos de casal. Modelinho fit não costuma fazer esse tipo de coisa, não... deve ter sido grave. Enfim, é só o tipo de besteira com a qual eu perco meu tempo ao invés de fazer algo produtivo... Como a gente veio parar aqui, mesmo? Do que que eu queria falar, meu bom Deus?
Ah! Isso! Muito obrigado! Nossa, mas será que ainda dá tempo? Bom, vou falando e você me avisa quando der, então. Pai é mau, mãe (tadinha) é silenciosa, Pedrinho morreu, blá blá blá — acho que nisso tudo eu fiquei preso na adolescência, sabe? Mas emocionalmente falando, mesmo. Como se eu tivesse crescido e tudo o mais, só que a minha inteligência emocional ficou estagnada naqueles quatorze anos e tal. Faz sentido isso? Porque também me parece muito provável que isso seja só uma desculpa que inventei pra ser imaturo. Ela? Então, a Júlia, ela me apoia com essa história toda do cigarro, mas a gente quase nunca toca nos temas família e passado etc. Ainda mais porque ela teve uma vida bem diferente da minha. O pessoal que andava com ela era aquele que na minha cabeça vivia uma vida de álcool, festas e sodomia em baladinhas matinê. Eram todos uns fodidos também, só tinham grana e a sorte de ter nascido mais bonitos. São gente boa, hoje em dia não assusto mais. Se bobear me dou até melhor com os amigos da Júlia do que com os meus ultimamente. O pessoal agora parece que só quer competir quem trabalha mais, quem vai fazer tal coisa mais, quem não sei o quê lá mais e mais e mais. Eu só quero menos, pra falar a verdade. Essa coisa toda de trabalhar das nove às cinco não é meu sonho americano. Acho que meu sonho imediato agora é parar de fumar mesmo, provar pra mim que eu consigo e tudo o mais.
A comédia? Ah, sempre quis, acho que é natural pra mim. E, se você observar as minhas possibilidades, não restava muita opção pra mim: o Pedro não era lindo, mas era charmoso e tal; o Juninho nasceu modelo, o filho da puta; o Pai tem pinta de galã de velho oeste anos 50; e eu, bom, eu puxei à mãe (coitada) e, apesar de isso não ser de todo mau, perto deles sempre fui o equivalente a um baixinho gordinho — praticamente um sátiro. Tá aí, não é à toa que a mitologia existe. Acho que sempre me identifiquei com o sátiro, porque, apesar de ser feio, escroto e metade cabrito, o infeliz sabia se meter nos lugares certos, na hora certa e, no fim, é isso que importa. Ninguém precisa ser bonito pra transar, basta negociar com o porteiro da suruba. — Deu o tempo, né? Que bom, porque eu já ultrapassei minha cota de besteiras hoje. Quem vê pensa que eu já fui a uma suruba mesmo. Nem ménage com duas mãos... Enfim... até semana que vem, boa tarde!
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