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Magenta, uma fábula

  • Foto do escritor: Algum Lucas
    Algum Lucas
  • 24 de abr. de 2020
  • 2 min de leitura

Ao acender a luz, Homem percebeu que sua sombra havia feito as malas e partido, sem pretensões de regressar. Como há muito não ficava assim, tão sozinho, Homem jurou que ficaria algum tempo só, à revelia da vida. Nessas longas semanas, o tempo era lânguido e as horas nos relógios pareciam-lhe tão simultaneamente geométricas e gosmentas como favos de mel.


O tempo, porém, que é como a névoa, dura sempre menos que as horas, e as semanas passaram-se em preto e branco, numa casa com muita luz e nenhuma sombra. E esse ócio do existir só, no preto e branco anuviado do tempo que se perde a sonhar com cores, Homem encontrou-se perdido no quarto em que estivera com sua sombra pela última vez. Num fugidio instante, pensou nela — era uma ótima sombra. Foi-lhe a silhueta definitiva por tempo o bastante para que nem seus amigos mais próximos ousassem questioná-lo sobre ela: querendo ou não, nunca fora um segredo que partiria.


Ao canto do quarto, Homem podia ver mesmo sem luz o colorido das latas de tinta. Num ímpeto só, decidiu-se a pintar para si uma nova sombra, dessa vez com cores e que fosse muito, mas muito mais que uma mera sombra. Há tantas sombras que silhuetam, por aí, pensou Homem. Havia se decidido a confeccionar algo novo, algo incomensuravelmente mais do que uma sombra poderia sequer sonhar ser. E, por onde andava, pintava. Os rastros de tinta em tons de azul e rosa e amarelo. Há quem diga que ainda hoje pode-se reconstruir o percurso do projeto seguindo-se as marcas do pincel.


E com o passar acelerado do tempo, já não tão névoa quanto rodamoinho, as pinceladas faziam-se circulares, como se o refluxo dos segundos, minutos e horas arrastassem-no ao centro de um turbilhão incompreensível de cores confluentes das quais surgira, então, num crepúsculo outonal alaranjado, uma figura inconfundivelmente magenta. Tinha quatro patas e asas, tinha a face de Homem numa cabeça de leão. Homem encarava a figura de tinta, toda magenta, transfigurar-se numa esfinge.


Que é?, perguntou Homem, já acostumado às inquisições crípticas de suas esfinges. E com a voz cromática que só as esfinges têm, a esfinge magenta inquiriu: que pode saber de si o homem que edifica esfinges à sua imagem? Diga-me, Homem, continuou a esfinge magenta ao virar as costas antes que enfim mergulhasse em si própria: qual é o seu abismo?


Homem, ao perceber que por todo este tempo pintava um espelho, pulou de encontro à esfinge para encontrar o som seco em preto e branco da sombra que a esfinge legara. Cabisbaixo, ao deixar o cômodo, Homem apagou a luz.



 
 
 

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