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Meta:Ensaio - Posfácio de um livro parcialmente publicado

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    Algum Lucas
  • 26 de jul. de 2023
  • 8 min de leitura


META:ENSAIO


A muito custo é que se encontra um ensaio. Na mídia, tem seus antros remotos; nas Letras, só é ensinado se depois do gênero carta houver uma aulinha vaga. E, como não se faz abundante, é de difícil acesso a uma humanidade de gente como nós, que “[d]esde nossa mais tenra idade, aprendemos a querer e a desejar mais da mesma coisa. E, paradoxalmente, aprendemos também a ansiar pela variação, pela novidade.” (GARCIA, 2016, p. 16)

Mas acredito que se valer sempre dos périplos cotidianos e das desculpas de escopo macrocósmico são estratégias injustas que destituem o indivíduo de um mínimo de agência. Em algumas décadas, é possível que o uso de redes sociais amaine uma vez que suas mazelas se façam notar pelo senso comum. Neste ínterim, porém, que espaço resta ao ensaio no mundo das jornadas de herói personalistas e da leitura reduzida à identificação de si no “outro”? Sem então reforçar a “Agonia do Eros” (HAN, 2017a, p. 74) e a tendência de esvanecimento da alteridade na arte, como pode o ensaio contrapor ao conforto dos bem-me-queres cinemáticos e literários a sua potência de atrito, a palavra abrasiva?

Ensaiar, hoje, é tanto um manifesto de inadequação quanto de esperança.


Um ensaio é uma tentativa de incitar os outros a refletirem, de levá-los a escrever complementos. [...] Não se trata, com a edição de um ensaio, de comprovar algo ou de se contrapor a isso (como no caso de um experimento); ao contrário, trata-se de refletir novamente, de maneira dialógica, sobre tudo.

(FLUSSER, 2010, p. 185)


Os ensaios não têm espaço nas jornadas míticas e nos anais da história — para todos os efeitos, são tópicos, imediatos e em direção ao presente que germinará o futuro próximo. Posso me dizer demasiado inocente por acreditar que a abrasão da palavra ensaística no contemporâneo algodão-doce hiperconsumista tem poder de mudança? Pois inocente, então, sigo a elencar motivos com uma única meta em mente: propor como alternativa à assimilação e ao consumo de narrativas identitárias (amo x, porque o y de x é tão eu) o processo ensaístico como construção dialógica.





Primeiro ponto


Em primeiro lugar, gostava de deixar claro que minha esperança é, em grandiosíssima parte, proveniente dessa assertiva de Rancière: “O homem é um animal político porque é um animal literário, que se deixa desviar de sua destinação ‘natural’ pelo poder das palavras.” (2009, p. 59) Ressalto este ponto por saber incômodo, em tempos de racismo e misoginia sistêmicos, bravejar algo nas linhas de “Não às narrativas perspectivistas! Não à palavra de acalanto! Viva a abrasão!”

O que me aflige é a lógica da narrativa identitária exportada a diversas camadas da interação social e da produção artística, de modo que a descrição das personagens conte mais que o conjunto das obras; e a tolerância devenha, mais uma vez, um produto que vela o preconceito recalcado e a violência endêmica do capitalismo.


Muitas dessas séries, filmes ou artigos têm qualidade (eu assisto a eles com prazer) e não discordo de que possam representar importantes contramodelos para meninas, moças e mulheres, entretanto a difusão massiva pelas novas mídias de histórias individuais perpetua a ilusão de que qualquer uma pode realizar seu sonho, basta não ter medo de contestar certas normas. São narrativas que frequentemente se baseiam em uma psicologização das discriminações. A luta raramente é coletiva, a crueldade e a brutalidade das estruturas de poder raramente são mostradas de modo explícito.

(VERGÈS, 2020, p. 76-77)


A necessidade de representatividade é inquestionável, mas é preciso atentar para que ela não se construa em nichos de mercado. “Comprar não pressupõe nenhum discurso. Consumidores compram o que desejam, seguindo suas inclinações. Gostar é o seu lema. Eles não são cidadãos. A responsabilidade pela comunidade define os cidadãos. Os consumidores, acima de tudo, não têm responsabilidade.” (HAN, 2017b, p. 69)

No pêndulo das tendências polarizantes, um dos poucos gêneros com o privilégio de se abster da corrida dos ratos e dos modismos coetâneos é o ensaio, em parte por sua simplicidade identitária e ausência de personagens, mas também por se querer não-ficção vulnerável ao ponderar do outro, por se fazer lenha que mantém a chama acesa ao invés de labareda fátua, que conquista seus trocados — e se esvai.


Segundo ponto


No percurso que traço aqui, não cabe apenas evidenciar as mazelas do mercado sem explicitar a força da linguagem. E o faço de maneira singela, sei bem, mas dar espaço, através de excertos, a ensaios seminais de importantes discussões me parece muito mais profícuo do que ocultá-los num texto que trata de novos diálogos e suas criações.

Vive-se sob a sombra do futuro eficiente das inteligências artificiais, sob a luz azul dos smartphones e o ruir incessante de instituições milenares. Revoltar-se com um papa que se vale da humildade e da tolerância faz explícita a presença do capitalismo há anos engendrado no ethos cristão — e isso sem nem falar de teologia da prosperidade.

O que busco formular aqui é simples, mas requer premeditação. Almejo contrapor à narrativa do herói o manifesto humilde do cidadão. O tempo dos heróis passou, e as suas glórias não nos legaram mais do que um mundo que permanece em ruínas. A excitação com as novas tecnologias, sistemas e colônias em Marte não passam de engodos — antolhos, se preferir.


Enquanto a inteligência artificial está se tornando a principal área de pesquisa e de inovação no Vale do Silício, o cérebro decadente da América, dominado pela ansiedade e pela depressão, empreende uma busca furiosa por bodes expiatórios e por vingança.

(BERARDI, 2020, p. 184)


Se, com um mundo em degelo desenfreado, o mero uso, por ignorância, de uma palavra malquista pode ser impeditivo de um diálogo, já perdemos. Enquanto o que chamamos diálogos se fizer por entre likes, manchetes e algoritmos, não haverá espaço para — embora seja cada vez mais necessário — o ensaio.

E, uma vez que as catástrofes — “eventos apolíticos que simplesmente acontecem” (CHUN, 2015, p. 145) — devêm ideologizadas, atos outrora mundanos travestem-se de grandes acontecimentos: “Das infinitas mensagens que substituíram o simples ato de marcar um jantar ao gênero familiar de ‘encaminhamento de e-mails por acidente’, crises prometem nos mover do banal ao crucial ao oferecer-nos a experiência de alguma coisa parecida com a responsabilidade, algo como as consequências e alegrias de ‘estar em contato’”. (CHUN, 2015, p. 145) Daí, tal qual o clicar no coraçãozinho devém jura de amor, o mínimo impropério devém crise cósmica — e tudo fica a um blockbuster ou bestseller de distância de tornar-se banal.

E esclareço ainda que o que pretendo não é minimizar as mazelas de discursos de ódio ou considerar criar a eles grandes espaços e tolerâncias — pelo contrário: uma vez que a arte se torna intrinsecamente perspectivista, com a necessidade de identificação a cada etapa, o que acontece não é a diversificação da arte, mas a homogeneização do público. Não é porque o produto consumido é distinto que os consumidores não serão seres que consomem da mesma maneira. “É sobre a perda das diferenças que se funda o culto à diferença.” (BAUDRILLARD, 2017, p. 127) Assim, é impreterível que o leitor-espectador (luto para não chamá-lo consumidor, apesar de saber o estado das coisas) seja capaz de não só fazer uma escolha, mas de compreender os mecanismos de narrativização que importara das mídias para a sua vida.

Em rede social, fazendo o mesmo, busca-se afirmar o caráter único. Entretanto, “quanto mais se é sem caráter e figura, quanto mais se é mais liso, escorregadio, mais friends se tem. O Facebook é o mercado da falta de caráter.” (HAN, 2019, p. 73-74) De maneira que, ao passo em que a arte devém mais e mais superficialmente diversa — e diversificada —, o seu consumidor devém profundamente homogeneizado. Se o sucesso de “Parasita” (2019), de Bong Joon-Ho, nos serviu de alguma coisa, foi para lembrar-nos de que habitamos mesmo o país capitalismo. Mas o filme em si é prova de que arte é possível e não há problema em se entreter. Há quem se divirta a ler Wittgenstein. O fato é que, nas palavras de Byung-Chul Han:


A crescente estetização do cotidiano torna impossível agora a experiência do belo como experiência de vinculação. Ela produz apenas objetos da curtição volátil. A crescente volatilidade não diz respeito apenas ao mercado financeiro. Abrange hoje toda a sociedade. Nada tem perenidade e duração.

(HAN, 2019, p. 113)


Portanto, no fim das contas, venho tentando reposicionar o ensaio como ferramenta de vinculação perene? Definitivamente. Nos meandros do imediatismo cibernético e da superficialidade perspectivista, o ensaio permite um respiro durante a Asfixia (BERARDI, 2020) sufocante do mercado sobre a linguagem. Um respiro que possa soar até meditativo, mesmo e apesar da ferida que causa e da abrasão.

Em suma, me esforço para fazer crer que o ensaio ainda possa ser uma última fronteira entre o usurpar, pelo consumidor, do espaço do interlocutor.




Metta


O escritor atual tornou-se o camaradinha criativo atrás de ideias e histórias, um caçador de vivências e gírias. Em sua fuga contra o fracasso, ele parece ter esquecido que quem tem milhares de ideias e projetos é o publicitário; o escritor real muitas vezes tem apenas uma ferida cujo nome desconhece mas que lhe concede silêncio e uma palavra gaga e balbuciante.

(PESSANHA, 2018, p. 28)


Espero que ainda me seja permitido invocar ludicamente orientalismos para calcar jogos de palavras — e sigo: “metta” é o método de meditação zen budista que prevê o desejar o bem ao outro, ativamente. E a minha meta aqui nunca fora convencer ninguém de nada — estou sempre e apenas em busca de conexão. Não tenho pretensões de abolir as experiências digitais, nem acredito que a arte tenha morrido ou que o livro impresso venha a acabar. A golpes brandos, tento delinear as silhuetas dos fantasmas que nos assolam, e faço uso de metonímia conforme esta me corteja.

Não vou além da tentativa: se à poesia ficou relegada a expressão do íntimo e, à prosa ficcional, a da identidade, gostava de reivindicar ao ensaio o espaço do sonho e da discussão. Quero construir com o ensaio um reduto de empatia em que não seja preciso descrever-se etnograficamente para receber o benefício da dúvida. Gostava que o ensaio, com seus contornos indefinidos e lacunares, pusesse à mesa de quem tem fome de diálogo uma ideia para jantar. Que revertesse o feitiço do consumo e provesse ao leitor a dádiva da réplica — mesmo que não diretamente ao texto, ao menos ao seu estar-no-mundo, seu entorno, sua comunidade. Que não se pense em produzir e consumir ensaios, mas em germiná-los e nutri-los, de maneira que sejam capazes de fomentar e até reverter a metamorfose do consumidor em cidadão.

A ensaística resiste como a forma da palavra que abrasa, mas não por crueldade — e sim para cauterizar a ferida. “Passei a pensar no ensaísta como em um bombeiro, cujo trabalho, enquanto todos os outros fogem das chamas da vergonha, é de correr em sua direção.” (FRANZEN, 2019, p. 18) E me embaraço com meu otimismo doloso, mas sei que a vergonha só arde, ao passo em que a omissão é capaz de matar.

Minha metta, portanto, e com o perdão da palavra, é que ao leitor haja também sendas para alcançar as ideias, e principalmente ideias o suficiente para que não se perca no meio do caminho. Minha meta, enfim, é legar ao escritor que sonha com o sucesso do grande romance, um pedido: pondere sobre a possibilidade de escrita de um ensaio honesto. Talvez demasiado Jó e apesar dos percalços, escolho acreditar que há quem busque, ao invés de glória, interlocução.


Algum Lucas



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Bibliografia

BAUDRILLARD, J. La société de consommation. Malesherbes: Folio essais, 2017.


BERARDI, F. Asfixia: capitalismo financeiro e a insurreição da linguagem. São Paulo: Ubu Editora, 2020.


CHUN, W. Crisis, crisis, crisis. In: GRUSIN, R (ed.). The nonhuman turn. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2015.


FLUSSER, V. A escrita: Há futuro para a escrita? São Paulo: Annablume, 2010.


FRANZES, J. The end of the end of the world. Londres: 4th Estate, 2019.


GARCIA, T. La vie intense: une obsession moderne. Villeneuve d’Ascq: Autrement, 2016.


HAN, B. A salvação do belo. Petrópolis: Editora Vozes, 2019.


HAN, B. Agonia do Eros. Petrópolis: Editora Vozes, 2017a.


HAN, B. In the swarm. Cambridge: MIT Press, 2017b.


PESSANHA, J. A recusa do não-lugar. São Paulo: Ubu Editora, 2018.


RANCIÈRE, J. A partilha do sensível. São Paulo: Editora 34, 2009.


VERGÈS, F. Um feminismo decolonial. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

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