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Solilóquio 2.3 - Camilo Pessanha, Caminho da vida, Castelo de óbidos, Caminho II

  • Foto do escritor: Algum Lucas
    Algum Lucas
  • 9 de ago. de 2020
  • 5 min de leitura

Atualizado: 16 de ago. de 2020






Caminho da vida

Enfim, levantou ferro.

Com os lenços adeus, vai partir o navio.

Longe das pedras más do meu destêrro,

Ondas do azul oceano, submergi-o.

Que eu, desde a partida,

Não sei onde vou.

Roteiro da vida,

Quem é que o traçou?

Nalguma rocha ignota

Se vai despedaçar, com violento fragor...

Mareante, deixa as cartas da derrota.

Maquinista, dá mais fôrça no vapor.

Nem sei de onde venho,

Que azar me fadou?

Das mágoas que tenho,

Dos ais porque os dou...

Ou siga, maldito,

Co’a bandeira amarela...

..................................

Pomares, chalets, mercados, cidades...

A olhar da amurada,

Que triste que estou!

Miragens do nada,

Dizei-me quem sou...

Camilo Pessanha



Solilóquio 2.3: Camilo Pessanha, Caminho da vida, Castelo de óbidos e Caminho II

Na alvorada dessa carreira na escrita, oito anos depois de engravidar a noite com esperanças de um sol nascer, já não me sinto mais como se buscasse um brilho, uma luz no fim do túnel. Fico muito mais afeito às odes crepusculares e às ordens de um navio a navegar a esmo, sem rota ou bússola para guiar. Vivo mesmo é ao calar da noite, com as estrelas que, apesar de mortas, me instruem por rotas em mares desde sempre navegados... Desculpem-me os sonhadores camonianos, mas não vim para desbravar.


E não é como se eu não fosse capaz de fazer algo novo, talvez até o faça sem saber. Minha intenção, entretanto, é de apenas me sentir como quando sorri ou chorei de alegria — de novo. Sou muito mais afeito a repetições e clichês do que a grandíloquos experiencialismos. Sei que me contradigo — é uma arte que domino. Nisto, porém, não peco: mantenho-me consistentemente contraditório. Se ora faço o que jurei um dia nunca fazer, foi só porque outrora jurava também nunca me restringir as vontades do âmago.


E faço parecer como se fosse refém de volições e libidinosidades — sou mesmo é um homem severo, já o tenho dito há algum tempo. O que opero, contudo, são estratégias que me permitem certa maleabilidade no percurso: bastante jovem percebi que meu modo de ser poderia muito facilmente me levar à ruina, fosse eu não precavido quanto ao que faria a respeito do que esperam de mim. Como artista, portanto, busco confeccionar as expectativas de modo que sejam sempre apenas de um mesmo novo; como filho, as intermitências do tudo; como amante, a inflexibilidade do absoluto.


Não posso dizer que sempre evitei os desejos dos outros conscientemente, mas talvez a sensibilidade tenha me ajudado a senti-los doutras maneiras, de modo que, embora por vezes pelos motivos errados, com narrativas paralelas, tenha conseguido sempre fugir. Verbo que não gosto de usar, mas reconheço meu preconceito: quem foge é o medroso, o ladrão. Me engano, é fato. Foge quem tem algo a perder e já não confia mais na sorte, nas instituições.


E, como tantas vezes já o disse, me encontro aqui, perdido no meio do caminho. Aproveito o tempo que me resta até que a ordem do mundo se reestabeleça para viver ao máximo o meu momento ideal — profissionalmente, é claro — e me proíbo acreditar que isto possa dar certo. Diferente das minhas personagens, vivo sempre à espera do apocalipse. Quando morei demasiado sozinho, uma vez, após sete dias de não sair de casa nem ver ou falar com alguém pessoalmente, comecei a preparar pela casa equipamentos de sobrevivência num apocalipse zumbi. Ri, no fim das contas, e chorei, quando me percebi não só do mundo, mas de mim mesmo desterrado. Do degredo, então, pedi ajuda, e me escutaram.



Castelo de óbidos

Quando se erguerão as setteiras,

Outra vez, do castello em ruina?

E haverá gritos e bandeiras

Na fria aragem matutina?

Se ouvirá tocar a rebate,

— Sobre a planície abandonada?

E partiremos ao combate,

De cota e elmo e a longa espada?

Quando iremos, tristes e serios,

Nas prolixas e vãs contendas,

Lançando juras, improperios,

Pelas divisas e legendas?

E voltaremos, — os antigos,

E puríssimos lidadores, —

Quantos trabalhos e perigos!

Quasi mortos e vencedores?

E quando, ó Doce Infanta Real,

Nos sorrirás do belveder?

Magra figura de vitral

Por quem nós fomos combater...

Camilo Pessanha

Lá, distante e literalmente ilhado, descobri um único tesouro, justamente o de buscar as recompensas de um caminho desbravado. E detesto reconhecer minha dificuldade em sentir o passado pura e simplesmente, desnarrativizado. Mas a narração me permite tragá-lo mais calmamente, sem arder de ódio ou acalentar com desagrado.


Mas por quem fui lá combater? Com certeza não fora por mim. Posso brincar que queria fugir do exército, mas a verdade é que fugia do olhar daqueles que me amam. Era difícil ser amado sem me saber amar. E como o faria, se me repetia os sonhos dos outros, se me permitia somente aquilo que jamais desejaria viver? E pensar que eu fiz um ano de direito...

Se a vida fosse um idioma, já a dominava — o problema é que a vida reside no indizível, no incomunicável, e eu vivo a tentar dizer o que sinto na vida por meio de uma religião que eu mesmo criara e da qual fui excomungado. Nessas horas, só queria poder explicar os usos e porquês do mais-que-perfeito e do passado...


A verdade é que detesto me sentir dominado. Pedir apoio nunca foi o problema, muito menos me dizer derrotado. Mas, se a questão não é de competitividade, apreço ou vaidade, que me restava aprender da vida e desses sonhos irrealizados? Senti que me bastava apenas não me sentir mais isolado.


Não sei se ofereço a quem espera algo de mim alguma coisa. Só sei que o mundo era doído demais sozinho. Tentaram me empurrar goela abaixo a história do lobo solitário — e reconheço que falar em solilóquios não é lá algo que vá me ajudar na reconquista das conexões que importam. Mas quem fica por demais sozinho aprende o valor que há em monologar com miragens e paredes brancas e, principalmente, em cultivar silêncios compartilhados.


Me sinto bobo, muito mais do que só contraditório, ao me afirmar escritor que vê valor em, vez e outra, não ter nada a declarar. E se não me declaro aqui, ao menos me manifesto. É o que basta para mim. Mais do que ser visto, do que pensar, do que o processo, me resigno à fórmula que exclui a primeira parte da equação — vivo bem com a incógnita: simplesmente manifesto o ergo sum.


Silêncio — ergo sum. Já ergo era antes e ergo serei depois, até que deixe de ergo ser e isto me basta. E se um dia um filho meu me perguntar por que o mundo existe, vou responder com um sorriso e lágrimas de alegria, um abraço, um suspiro de quem se sabe demasiado existente — e isto basta.


Prefiro viver à margem das respostas e seguir a corrente das perguntas que se configuram rodamoinhos, não me importo de rodar em círculos, desde que em alto mar. Nau bailarina, que rodopia. Talvez assim dominasse a arte de dançar. Se outrora me punha a enfrentar as odisseias do mercado e do mundo em nome do respeito do mundo, já sei que não passava do campeão de um mundo em ruínas. Pretendo pertencer a um lugar nosso, novo.


Tudo isso para não ter mais que dizer a que vim ou aonde vou. Por que ou por quem combato o mundo. Talvez ele só precise de um abraço, como eu mesmo um dia precisei.

Caminho

II

Encontraste-me um dia no caminho

Em procura de quê, nem eu o sei.

— Bom dia, companheiro, te saudei,

Que a jornada é maior indo sósinho.

É longe, é muito longe, ha muito espinho!

Paraste a repousar, eu descancei...

Na venda em que poisaste, onde poisei,

Bebemos cada um do mesmo vinho.

É no monte escabroso, solitario,

Corta os pés como a rocha d’um calvario,

E queima como a areia!... Foi no entanto

Que chorámos a dôr de cada um...

E o vinho em que choraste era commum:

Tivemos de beber do mesmo pranto.

Camilo Pessanha

Serei eternamente grato aos poetas que me precederam e aos que virão depois de mim. Tenho algumas pessoas e isso é tudo o que importa. Quero me cercar destes meus poucos, embora preciosos, alguns. Nunca precisei verdadeiramente ser alguém. Bastou-me ser também algum.


O site, AlgumLucas.com

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Até semana que vem.

PESSANHA, Camilo. Clepsydra. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1995.

 
 
 

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