Solilóquio 2.5 – Vilém Flusser, Natural:mente
- Algum Lucas
- 23 de ago. de 2020
- 6 min de leitura
“O que importa, no presente contexto, é isto: Meu conhecimento prévio (botânico ou outro) a respeito de cedro e nogueira não toca o problema da estrangeiridade. Por exemplo: a nogueira pode perfeitamente ser originária de florestas distantes e ter sido importada para cá, por exemplo, pelos celtas. Não obstante, é essencialmente nativa. O cedro pode ter-se perfeitamente adaptado à circunstância angevina, e pode, inclusive, vingar melhor aqui que no Líbano nativo, e vingar melhor que a própria nogueira. Não obstante, é essencialmente estrangeiro. Preconceitos não ferem essências, as quais se revelam apenas em contemplações como é esta do meu parque. Acaba de se revelar um aspecto da essência da estrangeiridade.
“Da seguinte forma: Estrangeiro (e estranho) é quem afirma seu próprio ser no mundo que o cerca. Assim, dá sentido ao mundo, e de certa maneira o domina. Mas o domina tragicamente: não se integra. O cedro é estrangeiro no meu parque. Eu sou estrangeiro na França. O homem é estrangeiro no mundo.” (p.64)
Vilém Flusser
Solilóquio 2.5 – Vilém Flusser, Natural:mente
E tudo bem — nunca tive grandes problemas de adequação climática, salvo os que encontro na cidade mesma em que morei praticamente a vida toda. É sempre quente demais, ao mesmo passo em que é sempre menos quente do que no Rio de Janeiro em que nasci. Percebo, a cada página que escrevo, um ressoar retumbante das palavras de Flusser — meu único ídolo, talvez, se é que se possa frasear a coisa banalmente assim. Se em tantos momentos aqui soo demasiado arcaico ou sintaticamente paradoxal, é possível que tenha me apropriado descaradamente da forma de pensar do velho Vilém. E a ideia deste solilóquio me veio mesmo a fumar um cachimbo pela manhã, sentado na cadeirinha de praia que tenho na sala, ao lado de uma estante com todos os livros de Vilém Flusser, umas antologias e coisas que gosto de pegar para reler a esmo quando a vida me parece pacata demais até para quem se põe a contemplar o chão da sala sentado de cantinho numa cadeira de praia.
O fato é que, ao me afirmar eu, ser sentante em cadeirinha de praia no canto da sala, devim estrangeiro. E me adaptei melhor a este clima de entreposto do que a qualquer outro ao qual já tenha buscado me aclimatar. Não sou fugitivo de guerra nem sequer sobrevivente da crise da meia-idade — sou novo ainda. Apesar dos trejeitos e afeições geriátricos, imberbe.
Acredito que grande parte dos problemas que entendo no mundo vem do adequar-se ao mundo que meus contemporâneos tanto buscam. E não julgo quem busca acalanto no “parabéns amigo” online, ou no like providencial numa semana de estresse — os entendo e inclusive deixo aqui o meu coraçãozinho. Só me dói sabê-los assimilados àquilo que os desassimila de si próprios. Afirmar-se igual é desafirmar-se: é não mais pisar o chão do mundo para meramente navegar as ondas da cultura, da net. A simulação perpétua da mente, online, impossibilita uma confirmação do eu. É-se sempre demasiadamente igual ao outro — superficial, virtual e profundamente. Superficial, porque com os mesmos filtros e montagens; virtual, porque só e sempre no âmbito da possibilidade irrealizada; e profundamente, porque inquestionavelmente ecoantes de um vazio comum. Fôssemos todos estrangeiros confessos, pertenceríamos.
Eu, por minha vez, então, habito este espaço crepuscular entre o ser e o nada, entre o anonimato e o aperto de mãos. Faço do manifesto o meu único gênero literário — e o faço por acreditar que a arte não passe de uma maneira de dizer “Eis-me aqui —existo”, e isto me basta. Se um dia sonhei com algo mais, foi porque sonhava acordado, refém das minhas inseguranças e das minhas inseguras vaidades.
Se eu ainda me convencer de que a arte pode ser algo mais do que o sem-limites que já é, gostava que a minha fosse um chamado que pusesse o executivo a pintar, o cientista a cantar, o adolescente a pensar e o meu próprio eu a simplesmente continuar, pois, mais do que estas certezas que manifesto, minha existência permanece receosamente oscilante. A cada vez que me afirmo, duvido de mim. Se me perguntam em que acredito, respondo apenas que, quando muito, duvido.
“Mas quem sabe Schopenhauer tenha razão, e a tragédia seja o oceano comum do qual macieiras e eu brotamos, a vontade trágica que é representada pelas macieiras de um lado, e por mim de outro, nesta primavera?
“Mas como tudo isso é possível? Como podem os botões impor sobre mim visão trágica do mundo? O próprio termo ‘destino’ soa estranhamente aos meus ouvidos. Não se adapta, de forma nenhuma, à minha vivência do tempo. Não penso ‘finalisticamente’, mas ‘causalmente’ ou ‘estruturalmente’. O mundo não é, para mim, tragédia, mas teatro do absurdo. O futuro, para mim, não é meta fatalmente ‘predeterminada’, mas horizonte aberto de virtualidades realizáveis. Para mim, o caminho não é a viagem em busca da destinação (‘destino’), mas viagem aventurosa sem meta (‘sentido’). ‘Futuração’, para mim, não é a descoberta do fim (da ‘finalidade’), mas a prospecção do possível (da ‘liberdade’). Viver, para mim, não é encontrar meu sentido, mas dar sentido. O sentimento trágico da vida e do mundo (o fatalismo) não me é estranho, mas é sentimento submerso. O que domina em mim é a vivência do absurdo. Para mim, ‘necessidade’ não é o fim, mas a causa. Para mim, a natureza não é livro escrito que devo ler para poder viver ‘corretamente’. Não sou nem órfico nem maometano. Para mim, a natureza é conjunto sem significado, que adquire significado apenas quando eu e os meus semelhantes o transformam em cultura. Para mim, é isto que distingue natureza da cultura: cultura é texto legível (mundo codificado) escrito sobre o fundo natural sem significado (‘wertfrei = isento de valores’). Como podem os botões revolver, assim, as categorias impostas sobre mim por minha cultura antitrágica e antifatalista?” (p. 144-145)
Vilém Flusser
Para mim também. Nada mais libertador do que saber-se capaz, se não de entender o mundo, de sentir seus entornos, sem meta específica, mas como quem segue pelo labirinto com a mão rente à parede, na certeza de que, se houver um fim, o encontrará.
Gosto de perceber que me esqueci de mencionar que, ao lembrar-me deste livro de Flusser, contemplava não o chão, mas o quinto botão da orquídea branca e lilás que temos na sala. Desabrochara ontem. Ultimamente, poucas coisas na vida me parecem mais belas do que o desabrochar das flores e os florires de uma vida pacata e austera. Sou sempre apaixonado pelas banalidades do convívio cotidiano e os neologismos pitorescos que busco pra dar sentido à vida. Quando falava, noutro solilóquio, da minha redefinida melancolia, não conseguia me sentir satisfeito com o mundo que me faltava na palavra. Esta semana, enquanto brincávamos com jogos de palavras a caminho do mercado, pensei em chamar meu sentimento “Belancolia”, um quê fanho mesmo: “Belancolia”. Soa mal, mas soa exatamente como experiencio estes espasmos de beleza que vivo em silêncios lacunares e dias repletos de um mais do mesmo sempre surpreendentemente distinto.
Até o ano passado, eu talvez me embaraçasse de falar a alguém como falo aqui, e talvez até de simplesmente sentir como me sinto e de escrever as palavras no papel. Sou, inegavelmente, um homem severo, mas para mim isto não me destitui da flexibilidade ou da espontaneidade de uma existência tranquila. Acho “belancólico” sentir-me assim. Embora não suficientemente descritivo do meu estar no mundo, já é mais do que o que uma foto, uns dados e o meu histórico de visualizações e compras seria capaz de evidenciar.
Há quem leia Flusser e pense-o em termos como “futurólogo” ou até “cyber-profeta”, por ter apontado a diversos devires da experiência contemporânea digital. Mas era um homem sensível, que se afligia e escrevia, e por que isto não basta? Também não consigo aceitar a ideia de um destino, até porque, incapaz de experienciar diversas realidades, a minha será sempre a mesma e uma só. Para mim, também erra quem diz que a literatura “te põe no lugar de” — ela tem é que tirar, eu amo é a palavra que estrangeiriza. Porque: “Estrangeiro (e estranho) é quem afirma seu próprio ser no mundo que o cerca.” (p. 64)
Me pergunto o que seria do mundo se todos se pusessem a escrever sobre a vida que levam online. E já me agride dizer “vida online”, como se se pudesse tomar a simulação pela coisa em si. Permaneço aqui, nos meus cantinhos: o da cadeira de praia na sala e o da existência e do podcast que se fazem reconhecer pela qualidade do anonimato.
Hoje, se me perguntam quem sou, e respondo “algum Lucas”, parece-me resposta melhor do que se me apresentasse um arauto ou um avatar, com pretensões de soar como se fosse alguém. Não quero nunca ser alguém como me quiseram um dia. Quero me bastar sempre amigo, pai, filho, amado. Só mais algum Lucas. E essa vai ser sempre a maior recompensa da minha vida. Não me lembro em que poema escrevi isso (se não me engano era um poema sobre redondilhas), mas a sensação continua: “se saem pérolas de ostras/ tudo é poesia.”
E se, como disse Flusser, as vacas “são máquinas eficientes para a transformação de erva em leite” (p. 65), serei máquina eficiente para a transformação do vazio em afetos.
E-mails em: anonimatosmanifestos@gmail.com
O site, AlgumLucas.com
O jeito de apoiar diretamente, apoia.se/anonimatosmanifestos
Até semana que vem.
FLUSSER, Vilém. Natural:mente. São Paulo: Annablume, 2011.
Comments