top of page

Solilóquio 8 - Hobby

  • Foto do escritor: Algum Lucas
    Algum Lucas
  • 16 de ago. de 2021
  • 4 min de leitura

Solilóquio #8 – Hobby




Ultimamente a palavra hobby me vem soando insidiosa. E não apenas pelo que comentava no videor ergo sum a respeito da mudança na hegemonia de valores e benefícios de uma atividade — quando o indivíduo se vale muito mais do “ser visto como quem faz” do que do próprio fazer. Nisto não tem culpa a pobre e importada palavra. O que me aflige nela é a relação intrínseca que mantém com o “tempo livre”.


Pode ser paranoia minha, estou ciente, mas tempo livre já não me soa como uma possibilidade de algo mais, e sim como um lembrete de que se vive com menos. O sono e esse “tempo livre” são as fronteiras que o eu mantém com o mundo — que, neste caso, se entende como o do mercado. É o velho papo com o qual nos acostumamos: dou minha força de trabalho para que... blá blá blá. E as empresas permanecem a planejar obsolescências, adiantar adolescências, facilitar imprudências... Detesto ser reticente, mas há vezes em que elaborar o óbvio me priva da alegria de escrever.


De início, fica claro que o hobby tornou-se o que “nós mesmos” (e o marketing agressivo 24/7, à exceção das poucas horas que ainda conseguimos dormir) elegemos para poder dar sentido às nossas vidas — pelo que se entenda “elegemos para podermos destinar nosso dinheiro”. Porque o dinheiro na conta não tem propósito — “ele nem rende!” E dessa maneira até o capitalismo se ludifica em apps bancários e gamefica o ato de investir uns trocados a x% para que a instituição financeira os utilize a seguir sabe-se lá onde, com que finalidades e quantas vezes o valor de x.


Entretanto, o coitado do investidor, esse, que dedicou 40% do salário aos investimentos e deixou de ir ao cinema e comprou só o necessário, como um smartphone novo, capaz de operar quatro apps de brokerage simultaneamente e também uma tela extra para monitorar as trades enquanto trabalha e vendeu as varas de pesca de última geração que tinha quando pescava, dois meses atrás, e agora, se conseguir vender o barco, talvez possa pagar pelo curso e a conta premium... Enfim... encerro mais um parágrafo reticente, porque isto verdadeiramente me cansa.


Temos uma brincadeira aqui em casa que parte do princípio de que há um nicho para tudo. De construir cadeiras a ler embalagens de band-aid. E é neste enorme rol de atividades que o incômodo passa a me afetar. Pensemos em ler ou cozinhar, por exemplo: são atividades que podem ser vistas tanto lúdica quanto corriqueira e até profissionalmente. Estranha sintaxe, e mais estranha ainda a diferenciação semântica, ao se tratar de um hobby. Se cozinho porque tenho fome, não sou cozinheiro em sentido profissional nem lúdico, mas, se cozinho porque sou chef, posso até resistir às tentações do mundo e dizer que minha vida é só a cozinha — e nós acreditamos, está tudo bem. Agora, se digo que meu hobby é cozinhar, quantas cores você já imaginou que têm as minhas panelas?


Essa ideia de hobby sempre atrelada ao produto, à imagem e à identidade é perigosíssima especialmente do ponto de vista identitário. Se é o hobby o que vai me definir, as limitações do meu ser ficam diretamente limitadas pela oferta do mercado. “Ler é o meu hobby” significa que você lê em detrimento de assistir a filmes, de correr, de tweetar — ou que suas fotos terão grandes estantes de belíssimos livros coloridos ao fundo? Que o seu café na áurea caneca matinal será visto do zênite acompanhado de um belo bloco de papel com tinta chamado livro? Se o seu hobby é malhar, o que o difere do seu “gostar de assistir a filmes”?


Sei que muito da questão se pode encontrar no problema de eleger um melhor amigo, por exemplo. “Critério companheirismo, nota: 9”. Fossem feitas assim as escolhas, era plausível. O problema é que o critério vigente no mundo dos hobbies é o direito de gastar com algo. A partir do momento em que passo a viver do meu hobby, devenho profissional; um atleta, no caso da malhação, e, em entrevista, só vou poder dizer que “é o que faço no meu tempo livre, sabe? Amo minha profissão, mas às vezes preciso ler para relaxar, sabe?”

Não quero dar a entender que tenho birra com quem diz que o hobby é ler ou tocar um instrumento ou até mesmo namorar, seja lá como isso vá funcionar. O ponto é que, objetivamente falando, eu como e gasto muito mais com comida, por exemplo, do que leio e gasto com livros, ou fumo e gasto com cachimbos — no júri popular, contudo, meus hobbies seriam ler e fumar, ao invés de comer, por mais que sejam todas atividades equivalentes, em termos sintáticos. É verdade que comer todo mundo come e que ler já não é lá muita gente que faz? É verdade. Mas então some-se ao valor gasto o fator de diferenciação identitária et voilà!


Sei bem que há quem vá dizer que tem como hobby fazer trabalhos voluntários, construir abrigos e por aí vai. Parabéns. Mas isto não é uma competição retórica, e aqui falo explicitamente daqueles conhecidos como “a exorbitante maioria”. Costumo dizer: “Exceção não é exemplo (senão da própria exceção).”


No contexto de quem se vale do hobby como origem da identidade, tenho muitas perguntas a fazer àquele advogado, homem, pai, marido, irmão, nadador, e tantas outras coisas mais, que se diz “motoqueiro”. Ou dos tantos-tantas-coisas que se dizem última e sumariamente “corredores”. E, admito, acho incrível que há quem consiga viver bem assim. Admiro a convicção que têm as pessoas obstinadas a dar um nome a tudo, que adoram o papo de que “o ser humano está sempre tentando dar um nome e, com isso, um sentido às coisas”. E não o afirmo ironicamente, eu juro.


É só que já existe um nome para tudo aquilo que você é, do bom ao ruim, e sem exceções: que é o seu. E, caso ele já não baste para dizer que você não é o João ou a Maria, mas sim um João ou uma Maria, a totalidade da sua vida há de bastar — é o que ela tem belo. E se acaso não baste, eu não apostaria minhas fichas que um novo hobby pudesse te salvar. Mas esse sou só eu — e apostar nunca foi o meu hobby.


Pra ajudar diretamente é só entrar no PicPay e a partir de R$2,00 por mês assinar o @anonimatosmanifestos, ou, se preferir, enviar uma vez só para @algumlucas.



Algum Lucas


Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page