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Solilóquio 15 - Espirais

  • Foto do escritor: Algum Lucas
    Algum Lucas
  • 28 de set. de 2022
  • 5 min de leitura



Solilóquio 15 – Espirais


Ter dinheiro é algo muito novo pra mim. E não falo, é claro, de ter alguma grana, mas também autonomia financeira, os ônus e os bônus de tomar decisões. Falo de poder guardar e de como era mais fácil desperdiçar quando tinha menos. Quando se tem menos, é difícil imaginar possibilidades além das que você se permite conhecer. Não mais restrito ao dinheiro, então, comecei a levar esse mesmo pensamento a outros escopos, e foi com esse solilóquio que me deparei.


Fala-se muito hoje de duas frentes contraditórias: a de como é preciso especializar-se e estudar e fazer cursos e aprender coisas novas; e a de como as pessoas estão presas em seus ciclos e têm dificuldade de romper suas bolhas. Vejo isto, desde a diminuição do número de leitores à ascensão da literatura pop, como sintomas de uma pobreza intelectual muito enraizada na ideia de ciclos e na ausência perniciosa de perspectivas que ela permite.


Num aniversário, hoje, vê-se muito frequentemente a frase “que um novo ciclo comece!” e qualquer expressão afim. O que me incomoda, especialmente num mundo regido por esses tais ciclos como o que vivemos, é que ciclos tendem sempre ao ponto de partida. Sei que há maneiras positivas de encarar o fato, mas não seria o Ouroboros símbolo tão em voga atualmente se víssemos as coisas pela lente do copo meio cheio.


O que acontece, grande parte das vezes, é o reaproveitamento, a reciclagem de velhos costumes, velhas memórias, #TBTs e não sei o que mondays. Sensos comuns e “crenças limitantes”, como dizem os coaches, permanecem nos bastidores das vidas contemporâneas. Nunca com tempo para estudar algo novo, sempre com tempo para curtir o algo novo dos outros; nunca com esforços perenes de quebrar um ciclo, sempre reciclando promessas e ciclos e os mesmos infortúnios.


A cada ano que passa, concordo mais com Jean Baudrillard quando dizia em sua “Sociedade do consumo” que o maior abismo entre o rico e o pobre é a maneira como são ensinados a pensar o dinheiro. É este o absurdo. Mais do que político – estético e absoluto. Abstração que se reflete desde a arquitetônica necessidade de morar com a sogra à limitante impossibilidade de ter acesso a crédito para pagar um curso de inglês.


Pobreza e riqueza podem ser compreendidas de diversos modos quando inseridos nas regras do capital. Daí tantas ressignificações do que são “as verdadeiras riquezas” da vida e a subsequente venda de cursos para uma vida melhor. E não afirmo aqui que só o pobre hoje compre cursos de charlatões – o rico há muito deixou de ser quem meramente detém o dinheiro ou os meios de trabalho. É rico hoje quem tem influência. Num âmbito familiar, é claro que as tradicionais hegemonias mantêm-se, grande parte das vezes. Socialmente, entretanto, status quo e política devêm forças exponencialmente mais hegemonizadoras.


Muito se fala da atual economia de atenção, da dicotomia mundo real/mundo virtual, humanidade/smartphone. Talvez caiba refletir sobre os porquês da inflação da influência de personalidades filtradas, digitais, sobre a de amizades reais, a de familiares e a conjugal. Não venho em defesa das instituições e dos valores tradicionais, mas – tal qual não desmereço a comunidade religiosa como porto-seguro para muitos – não creio sensata sua desqualificação.


Pouco importa se o momento presente será para historiadores de daqui a 200 anos apenas um parágrafo ou objeto de estudo consolidado. “Houve o 11 de setembro, e então surgiu o TikTok. Já em 2053...” Nosso tempo transitório, nossas trocas de valores merecem ponderação, avaliação e experimentação antes de aceitas ou recusadas. Sempre houve poliamoristas, diferentes religiões e diferentes dietas, a diferença é que não foram sempre carregadas com a mesma carga identitária que têm hoje – cama e dieta, com mais; a religião, com menos.


Hoje, ao reciclar na quinta-feira a foto de uma festa, à mesma medida em que o valor daquele momento é inflacionado, o momento presente e os momentos futuros perdem valor, tamanha a discrepância entre a riqueza atribuída a um em detrimento do outro – mesmo que por mera reciclagem. A menção aos historiadores não é vã: todo momento é histórico, mas à História com H maiúsculo não cabem nossos momentos de história privativa. Essa é a maior dor de quem se crê não só protagonista de sua própria história, mas agente da narrativa humana. Que o Bóson seja de Higgs e o blush, das Kardashians é mera nota de rodapé no livro da vaidade humana.


A crença de sermos cada vez mais relevantes e inseridos em ciclos coesos e compreensíveis nos tira as oportunidades de fazer parte de algo além de nossas próprias narrativas. A vida pensada em narrativas tem seu apelo, mas traz suas mazelas, porque, no fim, a vida é meramente vivida – experienciada. Prego o fim da narrativa e o início da era da performance? Óbvio que não, apesar de acreditar piamente que já vivemos a era da narrativa performática. Uma trajetória recontada via LinkedIn ou Facebook não é nada além de um compilado de dados – a vida pensada em ciclos não passa de uma amálgama de espirais, sempre e cada vez mais profundas, não introspectivas, mas intransigentes com o contexto e as pessoas ao redor.


E com a imagem da espiral no próprio umbigo, ao invés do cíclico Ouroboros, é mais fácil enxergar não só a diminuição concêntrica da narrativa, como também a deflação do valor do outro imediato – literalmente aqui, das pessoas que encontramos sem mediação digital, imediatamente, no “mundo real”, se é que este ainda possa ser pensado separado do virtual.


Todavia, como no início falou-se em dinheiro, voltemos, espiralantes, com muito mais já dito e com o parágrafo de abertura inflacionado: “Ter dinheiro é algo muito novo pra mim. E não falo, é claro, de ter alguma grana, mas também autonomia financeira, os ônus e os bônus de tomar decisões. Falo de poder guardar e de como era mais fácil desperdiçar quando tinha menos. Quando se tem menos, é difícil imaginar possibilidades além das que você se permite conhecer.”


“Permitir” talvez seja um verbo inadequado ali, visto que ninguém lê os contratos de uso que permitem o bombardeamento de novas possibilidades de consumo material, consumo relacional, consumo inspiracional...


No mundo real, porém, estou preparado para abrir mão do conforto de entender cíclicos os meus momentos de insatisfação e glória? Mais: sou capaz de compreender minhas experiências sem contar com esquemas imagéticos como ciclos, teias e espirais? Serei capaz de me organizar durante o mês para que tenha um momento equivalente no próximo, ou será que repito agora um ciclo maior, preso a uma teia de ligações que se remetem umas às outras ou cada vez mais fundo na minha própria espiral?


Tento fugir do cinismo à espreita sem simultaneamente cair nas garras da esperança cega. No fim, tudo o que está aqui e tudo o que se pensa em narrativa é pura e simplesmente texto. No intuito de superar os textos que regem a vida, escapo às narrativas e acabo invariavelmente reduzindo a experiência a um simulacro – a texto. E às vezes era bom orgulhar-se ao menos de tê-lo feito, de ter criado ou pensado algo novo, apesar de sempre a mesma conclusão. Mas a experiência não cessa, seja em ciclos, teias, linhas, espirais ou simples fazeção. Coisas que só consegui pensar porque fechei o mês no positivo. Triste, não?


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Algum Lucas.





 
 
 

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