Solilóquio 16 - Mundano
- Algum Lucas
- 2 de nov. de 2022
- 4 min de leitura
Atualizado: 29 de jan. de 2023
Solilóquio 16 - Mundano
A palavra “mundano” sempre teve pra mim um sentido mais leve. Não tanto atrelada ao profano ou maculado, como muitas vezes se vê, mas verdadeiramente “do mundo”, num sentido de plena integração, de existência em simbiose com a paisagem. Coloquei os poemas que escrevo hoje em dia sob o guarda-chuva deste “mundano” mais meu, essa desapropriação sublime de quem encontra beleza no ouvir o dia da esposa, no tirar o lixo e no chegar pontualmente às reuniões do trabalho.
Das minhas antigas aspirações, sinto como se me tivesse despido de quase tudo o que era ornamental. Quando penso num texto, numa ideia, não tenho jamais a ânsia de levá-lo ao papel, muito menos de tê-lo lido por alguém. Hoje, estes são prazeres que me vêm no ato imaculado de escrever. Difícil, agora, é me dar ao trabalho de publicá-los, formatá-los, gravá-los, editá-los... Me rendi completamente à escrita. E quando ela acontece, cheia de seus sortilégios, ela mesma se rende também a mim.
Tento fugir aos subtextos lascivos, mas alguns terapeutas me diriam que no tratar-se de pulsão e desejo, seria impossível. Me restrinjo menos e me rendo às pornográficas vontades de usar o termo exato e um fait accompli quando elas me convêm. A esta altura, sei que quem me lê, mais do que por qualquer outra coisa, não está aqui para um espetáculo narrativo ou por uma performance emocionante – sou o homem das palavras agridoces que anunciam mais meios do que desastrosos fins ou brilhantes começos.
Posso tornar-me o que for, jamais deixarei de ser mundano. Meus mais viscerais e potentes desejos não vão além de uma reforma na sala de estar ou de um cantinho estilo garagem com uma mesa de jogos e quem sabe até um frigobar. Não sonho em aprender grandiosos segredos nem em desvendar mistérios da vida – vejo-a com a clareza que é preciso. Aceito-a em sua completude, com a morte, com o medo e com a ácida saudade que sinto das coisas que nunca vou viver.
Neste sentido, sempre soube que o verdadeiro dom era ser capaz de acreditar no sagrado. Com o perdão do trocadilho, eu talvez peque em não ser mundano o suficiente para isso. Preciso então de minhas próprias palavras e sentidos, de minhas verborragias desmesuradas e com propósitos autocontidos. Para mim, uma palavra é um texto, é todos os textos e nenhum deles jamais será suficiente. Como sempre soube em Alberto Caeiro encontrar um mestre, sei que amar é a eterna inocência, mas também que a única inocência é não pensar.
Vejo-me então cada vez mais próximo do profano. Talvez não precise mesmo ir em busca de novos sentidos, talvez só não visse bem que antes já era capaz de ver perfeitamente. Data maxima venia, como diria a caricatura de um jurista, minha visão não é das melhores, mas com minha miopia pude sempre ver o sublime tanto em Dante quanto em Ricky Gervais. Entretanto, eu talvez tenha problemas com o dicionário e precise novamente refazer sentidos, ressentir significados.
Não sei nem se já contei esta visão a mim mesmo: sempre me imaginei um construtor de cadeiras. Um marceneiro. Em tempos difíceis, quase fui em busca de um curso de marcenaria, mas não podia pagar por ele. Sempre imaginei que seria mais feliz se, ao invés de escrever, construísse cadeiras. É provável que eu jamais deixe de crer nisso – e mais improvável ainda que me convença a fazer uma cadeira, pelo puro medo de descobrir que as cadeiras são só cadeiras, do mesmo modo que os textos, eles mesmos, jamais serão sonhos. São sempre só palavras num papel.
Tenho certeza de ser mundano, porque tenho certeza de que não me entreteria com a ideia de ser qualquer outra pessoa, inclusive e especialmente nos momentos ruins. Reflito sobre os mistérios do mundo e os grandes aprendizados da mesma maneira que lido com a louça suja: seco as mãos num pano, depois de limpar os pratos, e me satisfaço por ter feito o que precisava fazer. Me compadeço de quem sofre, mas tenho saudades de não termos sofrido mais antes, para que hoje pudéssemos sofrer ainda melhor.
Quando me pergunto se algo é sagrado, lembro-me de que nunca me perguntaria algo assim – e sorrio. Lembro-me das vezes em que sofri quando tudo ia bem, e também das vezes em que fui feliz por tomar sol no horário do almoço a caminho da lixeira do prédio. Penso nos sofisticados livros que li que foram bons, mas penso também nos que achei uma porcaria. Lembro das lições que aprendi, mesmo sabendo que jamais aplicaria. Quando ouço grandes adágios, mantras e máximas, costumo supor que são algo que um construtor de cadeiras saberia.
Os conhecimentos mais complexos e também os mais simples podem ser expressos tanto em texto quanto em vida. Se algo é sagrado pra mim, é definitivamente essa máxima reducionista que criei. É a prisão que me liberta de aspirações que vão além de mim. Por que me agradaria ser mais ou menos do que sou? Seria, no fim das contas, ainda eu.
Entendo a relevância da retomada de termos como resiliência, serenidade e plenitude. Mas palavras são só textos – e textos são só palavras no papel. O que traz sentido às palavras, aos textos e à vida são os atos nelas presentes. Desde o ato de escrever, ao ato de manter-se vivo, ao terceiro ato explosivo de um filme hollywoodiano. Tudo só existe quando se lembra de existir. Quem sabe eu seja mesmo um homem religioso, de uma religião esquecida – ou só completamente esquecido pela religião.
Volto ao primeiro sentido de mundano. Talvez conviesse pensar mundano como um gradiente de cores, mas isso reduziria a palavra a um patamar mundano demais. E como quem divide em níveis arbitrários, me encontro plenamente confortável em meu estado mundano presente. Um pouco a menos, e arruinaria tudo; um pouco a mais, e talvez estivesse descobrindo os perigos de construir cadeiras e sonhando com a vida de artista na Califórnia.
Se o próprio mundo fosse mundano, os meses ainda seriam coloridos e a natureza deixaria de ser sublime? Não é o sublime justamente o fator determinante para a existência do sagrado, do profano e do mundano? Não seria o próprio paradoxo de tentar entender o incompreensível e criar o inimaginável algo sublime para uns e profano para outros? Sinceramente? Pouco me importa, tenho reuniões e amanhã preciso acordar cedo. Meu único sonho no momento é conseguir sonhar que era um construtor de cadeiras.
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Algum Lucas
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