top of page

Solilóquio 2.2 - Luci Collin, Ardor, Lida e Aos pés da letra

  • Foto do escritor: Algum Lucas
    Algum Lucas
  • 31 de jul. de 2020
  • 6 min de leitura




Ardor

anoto tudo

disseco e penso em sinceridades de juízo final

sem elaborar silogismos

sem fabular beijos não dados

sem inventar flores não vindas

registro

cada centímetro de uma raiz que avança pela terra dura

mas conto quando chove chuva fina

e das carícias da água sobre a secura

inscrevo

meus movimentos de espantalho

minhas andanças de palafita

menos meus sonhos de relevo e ouros que esses não tive

e sim os restos dos dias que raspo dos pratos

e qualquer coisa das sedes que tive também

conto

que importa aqui abrir as cortinas mesmo e por isso

inventario

roupas em seus romantismos de alvuras

dias em seus devaneios de serem sempre um hoje

dores em seus descabimentos mais conformes

e numa valia de compêndio o qualquer rabisco

toma a forma da palavra imensa

que se abriu para o incêndio

Luci Collin

Solilóquio 2.2: Luci Collin, Ardor, Lida e Aos pés da letra

Admito minha afeição por silogismos. Quero ser um intelectual, penso filosofias, concluo-me inapto à situação de poeta. Falhe talvez na minha dedução. O fato é que, independentemente do que eu seja capaz de confabular em silogismos e metáforas e analogias bem-estruturadas, não consigo sentir a partir delas o que me suscitam as palavras de Luci Collin, minha escritora contemporânea predileta.


Sem me julgar de início inapto à condição de poeta, percebo que me convenci, com muito tempo e hesitação, de que devia ser demasiado homem e, homem que me tornava, tinha de trazer comigo muito mais da secura da pedra, da forma, à la João Cabral, do que da beleza espinhosa da flor, como a do livro “Rosa que está”, do qual retirei os poemas de Luci Collin aqui citados.


O fato é que sempre soube chorar melhor do que gritar, do que oprimir aos berros. Nunca fui tão rock n’ roll quanto a sociedade o gostaria. Nos últimos tempos, digo-me — e me dizem por mim — um velho. E o fazemos no melhor dos sentidos. Tornei-me aquele que já não mais se permite usurpar as alegrias da vida por convenções sociais e sinopses de sinapses convalescidas. Decidi hoje que prefiro o sentir a alegria sentida do que o viver da maravilha bem narrada.


Não sei se faço tanto sentido quanto gostaria, e é isso o que me agride. “Não se faz poesia para ser compreendido”, repito a mim mesmo, enquanto me saltam pela boca desesperados pedidos de socorro que contenho quase no último instante, com medo de dizer a voz plena que, sim, eu queria mesmo era ser compreendido. O problema é que pouco do que importa tem sentido, e eu sei. Mas sonho com palavras desvairadamente esperançosas os sentidos do mundo. E é aí que talvez me enrole: uso os sentidos como substantivo e particípio. Os sentidos daquilo que almejo não foram ainda sentidos por mim. Faz sentido?


Escondo minhas verdadeiras intenções com essas bobagens, de modo que me caiba um ar de quase erudito consciente, de, como tantas vezes me afirmei, cínico, aos moldes clássicos. Mas que virtude posso encontrar numa vida que me desvirtua a mim mesmo em nome de — de quê? De um sentimento honesto ou de um ideal moldado pelo medo não conseguir ser alguém na vida? Porque o que temo mesmo é continuar a não sentir a chama da palavra em combustão, ao ter me precavido friamente contra o ardor.

Lida

nesse dia mesmo

em que se é pura perda

em que se sofre saques e ludíbrio

catar os cacos

porque seguem tendo a mesma feição do todo

ajuntar migalha e estilhaço

e conjugar em modo subjuntivo

porque se quer depurar o que nos diz

o exórdio das rosas de inédito semanticismo

e não se pode demorar tempo

porque instaura-se um limo impeditivo

e mirram-se asas e expiram voos

e não se queria demorar tempo

porque precisa-se de quem cuspa firme à distância

de quem preste-se a ter os pés queimados pela brasa

de quem espane o logro dos discursos ferrugentos

e delate a rigidez das pétalas dissimuladas

de quem cutuque de quem esgaravate

porque nesse dia mesmo

não se pode mais tomar como acalanto

a ode espúria dos cínicos

e não se pode mais tingir de falso rubro

o fundamento do sangue

e não se pode permitir que façam gorar

a pulsão apta e evoluída

flórea e vigorosa

do verso

Luci Collin


E agora, gravando, escrevendo, me permitindo; sei que tardei a encarar os fatos: me ludibriava sonhando-me um grande pensador. Eu sou é por demais sensível. Acho que me escondo às vezes por trás de circunlóquios — palavra que confirma o que acabo de dizer — e tento desesperadamente me provar escritor de tudo o aquilo que nunca sonhei escrever. Nem sequer sonhei que escrevia — quando vi, já havia escondido o texto escrito, com medo de que me descobrissem.


Fui mesmo o cínico das odes — mas espúrio fui eu. A ode teve sempre seu lugar como filha do mundo. Eu é que nasci ali ilegítimo. “Filosoeta wannabe”... Pra quê tanto medo do tiro sair pela culatra, se a sua arma é um buquê de temores? Qualquer assombro que se vai é motivo de comemoração. Esses dias me alegrei de não ter mais medo de aranha. Aí me lembrei que nunca tive medo de aranhas... “E se eu me tornasse um daqueles...?” Fui sempre medroso demais para deixar de ser alguma coisa — então me precavi com as estratégias do nunca me tornar. Sequestrei para mim o verbo “devir” e me pus a escrever filosofia inverso: ao invés de filosofar em versos, inverti — versava minha filosofia na arte de expressar o sentido. Tudo aquilo que eu havia um dia sentido.


E enquanto todos os poetas que adoro escrevem em tons de escarlate e falam de todo o estertor que se faz vermelho em flor, fico a conjecturar o que seria da vida se eu já tivesse sofrido incandescentemente. Minhas dores foram sempre lacunares. Nas pungências estridentes em entes como os poetas que amo, sempre pude encontrar expressas as dores que sentia — porém nunca minha própria maneira de sentir. Até os sons aos quais me apego são languidos, taciturnos. E os inimigos que elejo? A Ânsia, a Fé, a Opulência. Acabo de perceber que o silêncio que julgava ser meu aliado, talvez tenha me obstado a independência.


Colho meus cacos pelo chão. Percebo que já não me cabe uma vida em formas de metáfora. Se me digo baterista, quando é que vou me permitir aprender o violão? Uso meus próprios termos para definir minha poesia e minha filosofia de vida: desnarrativização. Se disser que sou isso, porque aquilo — erro. Não posso mais me permitir a conclusão. Falava há pouco da minha afeição aos silogismos. Mas até quando? Nestas horas só me vêm à cabeça post hocs e tudo quanto é tipo de jargão — mas até quando? Quero começar a viver a vida como poesia — menos sentidos do que desconexão. “Mas Lucas, a poesia não...” Até quando?


Ah... confesso que às vezes sou cruel demais comigo ao projetar a suposta vontade do outro. E o problema aqui é justamente esse: querer tanto e tão intensamente o calor da proximidade do outro, mas se tornar capaz de consegui-lo apenas ao queimar as pontes... Firo aqui minhas próprias regras — que cunhei pequeno, mas até quando? — que nem sequer me permito a contenção dessas lamúrias reticentes...


Espero do outro tudo de pior que faço comigo mesmo. Julgo que o outro será como é o pior que há em mim. Temo um dia precisar de algo mais do que tudo isso que, da ilusão do anonimato, manifesto. Já tenho coragem de dizer que tenho coragem de dizer que sou escritor, embora, nos papéis em que isso importa, seja só capaz de falar que temo a chegada do fim antes de eu ter me tornado capaz de afirmar que sou escritor — sem porquê.


Na verdade, tenho medo de que um dia acabe sem que eu tenha tido a coragem de fazer daquilo que sinto, pura e simplesmente, texto.






Aos pés da letra

não sei você

mas eu por dentro estou quase num

nem existo quase na lona no limbo

na face escura da lua

na rua a ver navios

quase imprevisto

não sei você mas eu

por dentro estou com um estrepe engasgo

parece indeferimento

por dentro é rés movimento

é sem balanço sem serventia

por dentro um estrago

não fosse o colibri aqui faz pouco

tinha me abstido dessa cena

tinha desistido desse filme

— espelho bissexto algo turvo —

não fora o sol que entendi esplêndido

passava batido o entardecer vermelho

pela natureza desse ofício

pelo oficioso desse esforço

não sei você mas eu por dentro

sou só

texto

Luci Collin




E encerro dizendo que gostaria que me caísse tão bem quanto me cai o vermelho todo esse sentir que sinto meio azul.

O site, AlgumLucas.com

Até semana que vem.

COLLIN, Luci. Rosa que está. São Paulo: Iluminuras, 2019.

Posts recentes

Ver tudo

Comentários


bottom of page