Solilóquio 2.4 - Saigyo, Poemas da cabana montanhesa
- Algum Lucas
- 16 de ago. de 2020
- 5 min de leitura
Tendo me retirado do mundo, estava eu nas colinas chamadas Higashiyama e, ao convite de alguém, fui ver as floradas em Shirakawa; mas cedo eu abandonei o local e voltei, refletindo sobre o passado como isto aqui:
Esta disposição de espírito
Permite-me voltar sem ao menos
Ver as inflorescências caindo:
Talvez sinal algum de que eu
Não sou mais o que costumava ser.
Saigyo
Solilóquio 2.4 - Saigyo, Poemas da cabana montanhesa
Não gosto de soar demasiado heraclitiano ou orientalista, mas admito viver muito mais próximo da contemplação do que da intensidade. Talvez não mentalmente, mas fisicamente, com certeza. E não é que eu não saia do lugar ou fique para sempre a contemplar paredes brancas — é que, para ficar pensando, ando de lá pra cá na sala ou no escritório, e até na cozinha, mas não me movo geograficamente de modo a me sentir como se tivesse ido a algum outro lugar. Há quem diga que vivo no mundo da lua, com olhos inquietos, perscrutantes. Mas, se me perguntarem o que busca o meu olhar, não sei dizer. Talvez uma saída? Definitivamente não sei.
Como a personagem que vaga as montanhas, vago pelo apartamento como quem desbrava o infinito num tapete sujo, que coloquei no tanque e me esqueci de lavar. Continuo pensando em termos de quem sou e de como me tornar, sem parar direito para sentir o como estou e como me tornei.
É sempre ridículo pensar que se perde ao menos uma década por vida a divagar sobre quem somos ou como sê-lo. Encontro cada dia mais acalanto nas lacunas inexprimíveis entre o ser e o não ser.
Logo mais, surgirá a palavra melancolia, mas não a quero aqui expressa como por tanto tempo fora usada: “Tristeza profunda e duradoura”. Opto por uma interpretação da segunda definição no dicionário: “hipocondria”. E me refiro aqui a um estado de busca sempiterno, à forma de viver sempre em busca daquilo que se sabe inexistente, de uma pergunta que se possa responder, de uma existência à qual se possa atribuir sentido. Contemplo jardins e cidades e as ondas do mar como quem busca glórias e intensas sensações. A diferença resida, talvez, na intensidade do sentir que me advém dos breves espasmos de beleza encontrados só nos sorrisos de quem amamos e no lilás sereno de uma orquídea a desabrochar.
Detesto as abelhas, criaturas perseguidoras, mas sonho encher minha casa de flores. Detesto fugir à minha austeridade, à minha existência estagnada, mas não consigo viver sem sair para pedalar.
Enclausurado, não sonho — rememoro. Perscruto os breves momentos da vida em que falei com as nuvens e obtive resposta. Perguntei-lhes silêncio, e elas me responderam que era sempre tempo de amar. Gostava de me pensar nefelibata — do dicionário: “Nefelibata: 1. Que ou quem anda ou vive nas nuvens; 2. Que ou quem é muito distraído; 3. [Depreciativo] Diz-se de escritor, geralmente excêntrico, que faz prosa ou versos que se afastam dos processos literários mais comuns.” E confesso: de início, achava piegas a ideia de me considerar alguma coisa que viesse com “escritor” na definição, mesmo que na terceira e última delas. O fato é que, agora, após tanto escrever sobre isso, eu talvez não possa mais negá-lo. E não me acho lá tão distinto nos processos, mas também nunca parei pra prestar muita atenção no que faziam os outros. Por muito tempo, meus olhos inquietos buscavam apenas justificativas nos modos de ser dos outros, para eu confirmar se os outros eram mesmo mais felizes do que eu. Nunca consegui...
Na minha Ataraxia, um livro-diário de 365 páginas, meu maior conflito é ser feliz. Duvidava da possibilidade de ser um poeta feliz. Duvidava da possibilidade de ser poeta sem sofrer. “O amor tem que doer”. Que vão à merda o poeta e sua dor pré-fabricada. Me recuso a legar ao mundo receituários de sofrimentos infindáveis. Quero prover a mão amiga, o abraço verdadeiro, apertado. De que te serve mais um olhar que julga, se o que importa na vida é sorrir com os olhos fechados?
Um mundo sem
A dispersão de inflorescências,
Sem uma lua enuviada
Me privaria
Da minha melancolia.
Saigyo
“Inflorescência: [Botânica] Disposição geral das flores nos vegetais”. Curiosidade: falo das flores, mas até recentemente, fora sempre mais feliz no outono do que na primavera. Vivia mais à vontade com a esperança de um recomeço do que com a sua certeza. A ausência das flores me fazia lembrar do quanto as amava. Não posso mais viver assim. Vivo sempiternas primaveras — “Sempiterna: 1. Que não tem início e não há de ter fim; 2. Duradouro, perpétuo”.
Talvez pensasse a vida outonal, porque acreditava na incontornável sentença do tempo, na perda. Mas só se pode perder aquilo que se tem — e ter é estar aqui, parado, a contemplar o momento em que tudo há, porque um dia houve já alguma coisa. A memória é uma dádiva da qual tento constantemente não me esquecer.
Se parasse para pensar que me permitiria passar não só ao papel, mas aos outros, estes devaneios líricos que me vinham na cabeça, jamais acreditaria. Perguntaria a mim mesmo se era possível e, por não ser tão austero quanto as nuvens o sabem ser, responderia a mim mesmo que não.
E que bem me faria cultivar semânticas poeticamente tristes, como a da melancolia depressiva ou dos sonhos inalcançáveis? A quem sonha ser feliz, basta continuar a sê-lo. E não falo como se não me dispusesse a breves e longos sofrimentos em troca daquilo que desejo — mas se o faço nesta busca, posso dizer que sofro? Não gosto de enaltecer grandes esperanças, porque conscientemente me mantenho cínico, digo-me cético e ajo como tal. Mas sinto haver no mundo uma saída — e aceitaria como resposta o mero processo de buscá-la.
Não pretendo, sinceramente, ressignificar palavras, mas não posso aceitar um mundo em que melancolia signifique só e simplesmente sentimentos negativos. Não se trata mais da situação dos monges medievais, do taedium vitae: temos aonde e como ir — e inclusive como permanecer, se o desejarmos. Repito sempre os meus primeiros versos, os que me fizeram sentir poeta: “Me encontrei aqui, perdido no meio do caminho”. Repito ainda que, honestamente, poder contemplar a busca me basta. E, uma vez alcançado o destino, relembrar o percurso há de me fazer chorar — e isso basta.
Cresci no tempo da opulência, do king size e do sempre mais, mas nunca fui tão feliz quanto ao olhar as nuvens ou a pedir a ajuda do pai para dormir lá fora na rede. Os méritos, o elogio e o livro publicado não passam daquilo que me permite a única e mais pura felicidade que há: melancolicamente contemplar.
À beira da estrada
Na sombra de salgueiro
Onde flui límpido regato,
“Só por um minuto”, disse eu,
E ainda não parti.
Saigyo
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Até semana que vem.
SAIGYO. Poemas da cabana montanhesa. São Paulo: Hedra, 2011.
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